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A possibilidade de um herdeiro ser excluído da sucessão, seja por indignidade ou deserdação, decorre de uma dupla função: a primeira é a de que nenhum indivíduo possa ter ideias maliciosas voltadas ao seu benefício patrimonial, entre elas, a de ceifar a vida de seus ascendentes, por exemplo, com foco no recebimento da herança. A segunda finalidade é, vez praticado um ato que afronta os limites éticos impostos pela sociedade, o agente possa ter consequências na esfera cível, independentemente de eventuais punições a serem aplicadas em âmbito penal.

Enquanto a indignidade pode ser aplicada a qualquer herdeiro, seja ele legítimo ou testamentário, a deserdação somente é aplicável aos herdeiros necessários, sendo estes, segundo o artigo 1.845 do Código Civil, os descendentes, ascendentes e cônjuge.

Para que a última possa ser configurada, além das práticas elencadas no artigo 1.814 do diploma civil, nosso sistema jurídico também prevê outras hipóteses nos artigos 1.962, aplicando-se para afastar da herança os descendentes e no 1.963 as hipóteses de aplicação aos ascendentes.

Uma vez praticado o ato que possibilita a deserdação, necessariamente, o ofendido deverá realizar testamento, em qualquer modalidade permitida, declarando de forma expressa sua intenção de elidir da sucessão o herdeiro reservatário e, também, qual o motivo.

Veja que, dentre as hipóteses em que os ascendentes podem ser afastados da herança, no supracitado 1.962 do Código Civil, encontra-se a possibilidade de agressão física, bem como o desamparo do filho em deficiência mental ou grave enfermidade.

A questão a ser pensada na contemporaneidade é a de que, partindo da premissa que a legislação foi editada no início da década de 1970, oportunidade em que o direito civil era extremamente patrimonialista e não se cogitava a proteção a qualquer dano existencial, nós poderíamos alargar as hipóteses de aplicação da deserdação? Haveria alguma lógica em permitirmos que apenas os danos físicos pudessem ser motivo de afastamento da herança e, por outro lado, deixarmos de apresentar consequências aos solavancos psicológicos que podem ser causados por aqueles que deveriam proteger?

É justamente nessa linha que, considerando as consequências nocivas de uma campanha de alienação parental, cujas marcas podem ser muito mais graves do que a prática de violência física, comungamos da ideia de que o agente alienador pode ser afastado da herança por cláusula testamentária deserdatória.

Recorde-se que, no artigo 3º da Lei 12.318/2010, a prática alienadora constitui abuso moral e, em um sistema jurídico que não tolera nenhuma prática de violência física, sequer psicológica na criação da prole (artigo 18-A do ECA) é necessário ampliarmos as possibilidades de exclusão da herança, tendo como premissa uma interpretação finalística.

Embora a doutrina, tradicionalmente, apresente o rol de atitudes deserdatórias de forma taxativa, é certa a necessidade de uma interpretação teleológica finalística.

Para a efetivação do afastamento, quando da morte do testador [1], além da ação de registro de testamento, os interessados deverão promover demanda declaratória da deserdação do alienador ou alienadora, devendo ser comprovada a veracidade da causa alegada pelo testador, na esteira do que dispõe o artigo 1.965 do Código Civil.

A tese aqui defendida tem como escopo a eticidade e a aplicação de consequências patrimoniais àquele que, em seu agir nocivo, pretendeu apagar o outro progenitor ou todo seu núcleo familiar da memória da prole. Nada mais justo, quando da morte da vítima da nefasta campanha alienatória, seu agente seja “apagado” da herança vez que, afastaria o senso de justiça o proveito econômico de alguém que tanto mal causou.

[1] Já decidiu o Tribunal de Justiça de Santa Catarina sobre a possibilidade do ajuizamento da ação declaratória em vida, entendimento esse que conta com nossa simpatia: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE DESERDAÇÃO. SENTENÇA QUE EXTINGUIU O FEITO POR ILEGITIMIDADE ATIVA. DIREITO DE DESERDAR ESTABELECIDO NO ARTIGO 1.961 DO CÓDIGO CIVIL, NÃO TENDO A EXEGESE DO ARTIGO 1.964 DO MESMO DIPLOMA CONDÃO DE AFASTAR O CORRESPONDENTE DIREITO DE AÇÃO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.

No comando legal em que estabelece que somente com expressa declaração de causa pode a deserdação ser ordenada em testamento o que disse o legislador é justamente o que tratou de dizer, no que não está incluso o afastamento do direito de ação que albergue o direito de buscar a declaração judicial de deserdação.

O artigo 1.961 do Código Civil assegura que “os herdeiros necessários podem ser privados de sua legítima, ou deserdados, em todos os casos em que podem ser excluídos da sucessão”. Sendo evidente que em relação ao herdeiro obrigatório a norma prevê uma punição que em nada se confunde com alguma faculdade, a conjugação do verbo poder lá produzida diz respeito ao direito de alguém excluir de sua sucessão aquela espécie de sucessor. Em nenhum momento o legislador, ao prever o direito de deserdar, estabeleceu esta ou aquela forma como única e essencial para seu exercício. Não se lê no dispositivo referido, muito embora possível seria se tanto tivesse pretendido seu redator, algo como: “somente por testamento os herdeiros necessários podem ser privados de sua legítima, ou deserdados, em todos os casos em que podem ser excluídos da sucessão”.

Ao ordenar que “somente com expressa declaração de causa pode a deserdação ser ordenada em testamento”, agora no artigo 1.964 do mesmo diploma legal, longe de dizer que o despojo hereditário obrigatoriamente há de se concretizar pela via do testamento, o regramento está a impor que se ou caso a deserdação se fizer através daquela espécie de clausulado da herdade obrigatoriamente haverá de nela se constar expressa a sua causa.

Ao trazer para si o embate judicial frente ao herdeiro que deseja deserdar, o autor da correspondente ação impede que tal discussão seja lançada para empós sua morte, evitando cizânia dentre seus herdeiros. Vê declarada, assim, a deserdação que deseja enquanto ainda em vida e evita que seus sucessores herdem, para além do espólio, também discórdia.

Forte também no exercício da equidade, assim, há que se concluir diversamente do que vem compreendendo a doutrina e com ela os poucos julgados pertinentes à quaestio em exame. Tendo-se o ato de deserdação por um direito e como direito dele decorrendo uma ação, cabível sua consubstanciação para além do testamento, exercível através de demanda judicial onde se reconheça a causa e se declare deserdado o herdeiro que se quer deserdado e que deserdado merece ser.

(TJ-SC, Apelação nº 0300716-33.2018.8.24.0113, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Edir Josias Silveira Beck, 1ª Câmara de Direito Civil, j. 9/6/2022).

A notícia da morte do músico carioca “Mr. Catra” aos 49 anos, em razão de um câncer no estômago, por si só, já bastaria para refletirmos sobre diversos fatores importantes da vida, entre eles, a sua brevidade e a necessidade de não postergarmos uma série de escolhas para “quando tivermos tempo”, principalmente, para estarmos com quem amamos.

Todavia, para além da imperiosa reflexão sobre os caminhos que a rotina nos impõe, a morte do funkeiro também nos apresenta questionamentos no direito de família e das sucessões, vez que, segundo a imprensa, ele deixa três viúvas e trinta e dois filhos.

Como sabemos, no direito de família contemporâneo, o que se busca é, efetivamente, a família enquanto um espaço de realização afetiva. Nessa seara, importa salientar que, justamente, a Carta Magna de 1988 foi a mola propulsora para a abertura para que outros modelos de uniões pudessem ser considerados entidades familiares, quando até então somente a relação matrimonial recebia proteção estatal.

Mesmo com a amplitude de guarida a novas escolhas afetivas, invariavelmente, a questão da quebra da monogamia é, ainda, um fato polêmico nos Tribunais. Prova disso que, nos últimos dias do mês de junho de 2018, o Conselho Nacional de Justiça decidiu, por maioria, proibir que os titulares de Tabelionatos de Notas no Brasil possam escriturar relações poliafetivas, ou seja, todos os brasileiros que mantenham uniões formadas por três ou mais pessoas não podem documentar a existência de sua afetividade.

Longe do intento de classificar se, de fato, o cantor mantinha o que poderia ser classificada como uma relação poliamorista ou, por outro lado, se existiam três uniões paralelas, sem espaço de convivência mútua e intenção conjunta de constituir família, caberia analisarmos aqui sobre a pertinência da documentação desses relacionamentos, que fogem da configuração habitual, até como forma de prevenção de litígios futuros em relação à partilha, previdência e, igualmente, às questões sucessórias.

Em relação ao inventário do músico, por exemplo, não há dúvidas quanto aos direitos dos filhos, independentemente de serem originários de uniões distintas, mas resta a dúvida: qual das companheiras sobreviventes será a considerada legitimada a suceder? Mesmo que, por ventura, ele estivesse casado com alguma delas, seria justo que a concorrência sucessória, ou seja, a participação em conjunto com os filhos na herança, viesse a valorizar apenas a relação matrimonial?

Tendo como norte que, no ano de 2017 o Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucional qualquer diferenciação sucessória entre o casamento e a união estável, em nosso sentir, a participação do parceiro sobrevivente na herança, de acordo com o que estipula o Código Civil, é justificada pela manutenção de uma relação afetiva quando do falecimento, independentemente de sua natureza (marital ou convivencial). Dessa forma, salvo se o músico tenha disposto em testamento sua parte disponível de forma diferente, a fração que a legislação assegura ao cônjuge ou companheiro sobrevivente deverá ser partilhada em iguais condições entre as três viúvas.

Longe de qualquer título conclusivo e, na verdade, tendo como escopo provocativo, a situação em tela nos acende a necessidade de que, por maior estranheza que as novas afetividades possam representar ao pensamento estabelecido socialmente, o respeito à autonomia privada e a autorregulamentação das relações serve como forma primordial do respeito à dignidade da pessoa humana e, principalmente, das escolhas afetivas.

Assim como as uniões de pessoas do mesmo sexo conquistaram paulatinamente, nas últimas décadas, o direito de regulamentar suas relações e a equiparação aos direitos conferidos aos casais heterossexuais, chega o momento em que precisamos passar a conferir visibilidade e proteção aos novos modelos existentes na sociedade: essa que se encontra em constante mudança, da mesma forma de inteirações relacionais. Logo, o tempo presente nos obriga, de uma forma ou outra, a revisar nosso olhar sobre o emblemático “e viveram felizes para sempre…”.