A prisão civil do devedor de alimentos: a volta dos que não foram

Quais os caminhos a serem seguidos com a retomada da da prisão civil do devedor de alimentos?

Uma conhecida música entoada pelo Fabio Júnior afirma que o amor não tem de ser uma história com “princípio, meio e fim”.

Todavia, por mais que os apaixonados fãs do pai da Cléo Pires tentem imortalizar o nobre sentimento, a verdade é que, ordinariamente, as coisas possuem um ciclo existencial que há de ser respeitado.

Em meio às (justas, necessárias e responsáveis) preocupações com a saúde da população prisional brasileira, desde os primeiros momentos da pandemia, chegou-se ao consenso de que se deveria obstar o cumprimento da prisão civil do devedor alimentício em estabelecimentos prisionais – onde a insalubridade multiplicaria a chance de contágio pelo COVID-19.

Chegou-se a editor uma norma temporária afirmando categoricamente a impossibilidade de encaminhamento deste devedor ao sistema carcerário (o art. 15 da lei 14.010/20), em seguida, secundada pela jurisprudência superior (STJ, Ac. 3a T., HC 682185/SP, rel. Min. Moura Ribeiro, j. 28.9.21, DJe 4.10.21) – mantendo a proibição mesmo após a perda de vigência da lei, por conta das estatísticas ainda preocupantes.

Há, no entanto, um novo cenário social no país. As pessoas já não mais mantêm o isolamento social. O avançar da vacinação gerou confiança e uma positiva expectativa de superação do momento mais difícil. As pessoas frequentam, com certo nível de tranquilidade, shoppings, praias, cinemas… e, até mesmo, festas e comemorações. Por isso, é chegada a hora de rever o entendimento proibitivo do cumprimento da prisão civil do devedor de alimentos em regime fechado, separado dos presos comuns, como reza o Código de Processo Civil (art. 528).

Com efeito, não mais subsiste qualquer razão justificadora da proibição, uma vez que esse devedor de alimentos retomou, como regra, o seu cotidiano, vivendo e convivendo socialmente.

Nesse contexto, não se pode ignorar que a prisão civil tem natureza coercitiva (não punitiva) e, por conta disso, mantê-la em regime domiciliar é, sem medo de errar, violar a sua essência e finalidade. Exatamente por isso, ainda no início da pandemia, propusemos que se evitasse o uso da prisão domiciliar pela sua absoluta inefetividade como meio executivo, uma vez que não há meio para o controle de que o devedor permaneceria nos confins divisórios de seu lar, além da inexistência de sanção para eventual descumprimento.

Respirando esses ares, inclusive, a orientação jurisprudencial se firmou no sentido de admitir a adoção de outras providências constritivas, distintas da medida segregatória, mesmo que a execução de alimentos estivesse fundada na prisão (STJ, Ac. 3a T., REsp 1914052 / DF, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 22.6.21, DJe 28.6.21).

O momento, agora, exige que não mais se olhe pelo retrovisor, mas, sim, pelo para-brisas: com o avanço da vacinação e do controle da pandemia há de se autorizar o uso da medida prisional, na execução de alimentos, com cumprimento em regime fechado, em estabelecimento prisional, e não mais em domicílio. Pensar em contrário importará, efetivamente, em duplo gravame jurídico: i) beneficiar indevidamente um devedor recalcitrante de alimentos quando não mais existe um elevado risco de contaminação: ii) prejudicar, gravemente, o credor (no mais das vezes, uma criança ou adolescente) que, para além de estar privado do recebimento da sua pensão alimentícia, não consegue coagir o devedor ao cumprimento obrigacional.

Com a sensibilidade interpretativa que o momento exige, o Conselho Nacional de Justiça- CNJ chegou mesmo, através do Ato Normativo 0007574-69.2021.2.00.0000, de 28 de 22.10.2021, a recomendar a retomada da prisão coercitiva civil em estabelecimentos segregatorios.

É chegado o momento, então, de se reconhecer a superação do estado de excepcionalidade que justificou o não cumprimento da prisão do alimentando devedor em regime fechado. E, com esteio na própria legalidade que norteia o processo civil brasileiro (CPC, art. 8o), retomar a possibilidade de sua regular utilização. À luz dessas constatações, com absoluto senso de equilíbrio e responsabilidade jurídica e social, propomos:

i) para os procedimentos em andamento nos quais já houve decreto prisional (em estabelecimento prisional ou em domicílio), que sejam utilizadas  outras medidas executivas típicas (como penhora e desconto) ou atípicas (conforme o permissivo do inciso IV do art. 139 do Código Instrumental), ressalvada a possibilidade de decreto prisional por outros períodos de dívida, distintos daqueles que justificaram a anterior ordem prisional, sem perder de vista a efetiva possibilidade de variabilidade no uso das distintas técnicas executivas, consoante deliberação do STJ (STJ, Ac. 3a T., REsp 1.733.697/RS, Rel. Min. Nancy Andrighi).

ii) para os procedimentos em andamento nos quais não se usou a prisão como técnica executiva, e cujo crédito ainda não foi adimplido em sua inteireza, que se faculte ao alimentando a opção de requerê-la, agora, como técnica executiva possível para as 3 parcelas que se venceram antes da propositura da execução (seja lá qual tenha sido a sua data) e as que se venceram até a data da decisão do juiz, atento à limitação imposta pelo Par. 7º do art. 528 do Código de Ritos.

Com isso, por conseguinte, uma execução que se iniciou em junho de 2020 para a cobrança de 3 parcelas vencidas e inadimplidas (e que, por força do período de pandemia, não usou a prisão como técnica executiva) pode, agora, caso a dívida se mantenha inadimplida, requerer a prisão para o pagamento das 3 parcelas vencidas antes da propositura (março, abril e maio de 2020) e de todas as que se venceram no seu transcurso. Trata-se de cuidadosa hermenêutica da posição que já havia sido cimentada pela Sumula 309 do STJ, com o propósito de servir como combate ao inadimplemento.

iii) para os novos procedimentos iniciados, faculte-se ao credor a escolha da técnica executiva que se lhe mostre mais efetiva, dentre as quais a possibilidade de prisão civil do alimentando.

Registre-se que o uso da técnica interpretativa de distinção (método distinguishing) indica a inexistência de qualquer violação ao entendimento antes afirmado pela Corte Superior de Justiça, na medida em que a proibição de prisão civil em estabelecimento prisional se baseou em fatos já não mais existentes, o que confere segurança jurídica à retomada das medidas segregatórias de forma convencional.

Deixar de ajustar o entendimento à nova realidade social significa prejudicar duramente o credor de alimentos e, uma vez mais lembrando a canção do Fábio Júnior, transformar a decisão de alimentos em um jogo de caça e caçador.

 

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