A pensão alimentícia do infiel e a “exumação” do cadáver da relação

Atualmente, tratando-se de dinamismo da comunicação, contamos com a vantagem de que uma decisão judicial proferida em um extremo do país possa chegar, quase de imediato, ao conhecimento de um advogado que labuta há milhares de quilômetros de distância. Até pouco tempo atrás, antes do “crtl-c” e “crtl-v”, o acesso à jurisprudência, bem como a sua transcrição em uma petição, era uma tarefa artesanal que, obrigatoriamente, fazia com que o causídico tivesse que pensar a respeito de sua pertinência antes de usá-la, sob pena de ser penalizado a datilografar toda a página desde o início.

Por sua vez, no tempo presente, contamos também com uma desvantagem: em um ato quase automático, as pessoas compartilham notícias, acreditando em meras manchetes, sem qualquer reflexão acerca do conteúdo ou das consequências de tal atitude. Um grande exemplo desse novo mal do século é a notícia que tem circulado, nos últimos dias, no meio jurídico, sobre uma suposta decisão do Superior Tribunal de Justiça que teria afastado a obrigação alimentar entre ex-cônjuges em razão da prática de traição.

Todavia, em verdade, a decisão apenas transcreveu a ementa do Tribunal bandeirante (julgador de origem) e deixou de analisar o mérito do caso em razão de que, nos termos da Súmula 7 do STJ, não se realiza reexame de prova em julgamento de Recurso Especial (AgResp 1.269.166).

Importa salientar que o afastamento da pensão alimentícia, em razão de procedimento indigno em relação a quem a paga é prevista em nosso do Código Civil[2]. Ainda que tenha deixado a norma aberta, permitindo a aferição quanto à indignidade de acordo com o caso concreto, está consolidada a aplicação, por analogia, as regras dos artigos 557 [3]e 1.814[4], também do Código Civil, que tratam, respectivamente, da ingratidão do donatário e do herdeiro, o que vem referendado pelo Enunciado 264 da Jornada de Direito Civil: “na interpretação do que seja procedimento indigno do credor, apto a fazer cessar o direito a alimentos, aplicam-se, por analogia, as hipóteses dos incisos I e II do artigo 1.814 do Código Civil.” Veja-se que, na prática judiciária, a indignidade em situações de alimentos tem aplicação restrita a questões de gravidade extrema, não podendo ser aplicada em situações de infidelidade.

Ao depois, considerando que há bastante tempo a traição deixou de ser motivo para declaração de culpa em ações de separação, a tentativa de que esse assunto volte aos Tribunais, agora por via dos alimentos, parece uma tentativa de “ressureição de fantasmas” já adormecidos na prática familista.

Não podemos consentir com um flashback conservador que não se adapta ao direito de família contemporâneo, onde as pessoas, por décadas, buscaram o Poder Judiciário não em busca de Justiça, mas, sim, de determinação de culpados na “exumação do cadáver” da relação. Espera-se, por fim, que com responsabilidade e cuidado, necessários aos que laboram em direito de família, a propagação desse conteúdo não retroalimente demandas que precisam de um único processo, o terapêutico, para aliviar as dores, sempre presentes nas dissoluções afetivas.

_____

[1] Advogado especializado em família e sucessões. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM / Seção RS. Pós-Doutorando em Direito – Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Serviço Social – PUCRS. Mestre em Direito pela UNISC, com a defesa realizada perante a Università Degli Studi di Napoli Federico II, na Itália. Professor do Curso de Direito da Faculdade do Ministério Público – FMP, em Porto Alegre, onde coordena a Pós Graduação presencial e EAD em Direito de Família e Sucessões. Autor de obras sobre direito de família e mediação de conflitos. www.conradopaulinoadv.com.br / contato@conradopaulinoadv.com.br 

 

[2] Artigo 1.708 do CC: Com o casamento, a união estável ou o concubinato do credor, cessa o dever de prestar alimentos.

Parágrafo único. Com relação ao credor cessa, também, o direito a alimentos, se tiver procedimento indigno em relação ao devedor.

 

[3] Artigo 557 do CC: Podem ser revogadas por ingratidão as doações:

 I – se o donatário atentou contra a vida do doador ou cometeu crime de homicídio doloso contra ele;

 II – se cometeu contra ele ofensa física;

 III – se o injuriou gravemente ou o caluniou;

 IV – se, podendo ministrá-los, recusou ao doador os alimentos de que este necessitava.

 

[4] Artigo 1.814. São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários:

 I – que houverem sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente;

 II – que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro;

 III – que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade.